Capa | Biografia | Livros | Espaço Acadêmico | Fotos | Textos | Links | Mural de Recados | Contato

Textos

O que me relatou o mestre Guimarães

Nas minhas mais remotas lembranças, no estabelecimento de meu pai, em frente à estação ferroviária de Cordisburgo, conversava com viajantes das mais variadas regiões e condições sociais. Seus relatos incendiavam minha curiosidade do mundo e me faziam buscar todo o conhecimento possível através dos livros. Para não perder o tempo precioso, ao ler, eu costumava bater com dois bastões no livro, facilitando a concentração ao dar ritmo à leitura.

Nesse cantinho esquecido da civilização apesar de amar todos os aspectos daquela vida simples eu ansiava por conhecer o restante do mundo. Minha saúde precária atrapalhava e tinha sempre de ludibriar minha mãe e avó para conseguir devorar tudo o que eu podia ao longo das madrugadas. Queria tanto poder treinar com alguém culto e viajado as tantas línguas que eu teimava solitariamente aprender. Com elas conquistaria o saber dos costumes, literatura, cultura. Mas era tão raro um erudito naquela cidade, que eu ficava que nem mosca varejeira para absorver tudo o que o tempo permitia compartilhar.
O médico de minha avó me fascinava e logo decidi ir estudar medicina e sorver todo o conhecimento que a medicina pudesse me proporcionar.

Formado, o amor por minha terra e minha gente, pela simplicidade daquelas cidades por Deus e pela cultura esquecidas me fizeram embrenhar nos ranchos mais pobres e distantes e viver a desilusão de tão pouco poder oferecer e tão pouco poder avançar. Logo, desesperado pelo erro cometido, alistei-me como oficial do Exército, avançando pouco em meus desejos de obter um conhecimento ilimitado.

Mudar para Barbacena na posição de oficial, permitiu acesso maior à cultura tão sonhada, ao meu desejo por novos saberes e vida cosmopolita. Mais e mais fui estudando, conhecendo diplomacia, diplomados e nesta nova paixão, obtive a informação de que haveria seleção para embaixador. Assim, o que foi possível li, freneticamente, até poder me considerar adequadamente preparado. Quantas vêzes me joguei em uma banheira de água gelada para vencer o sono, meu constante parceiro nada servil.

Li, reli, reestudei, avancei, retrocedi e subitamente me encontrei em frente à banca de seleção. Senti que vencer seria quase inatingível. Na prova oral, senti a descrença de um dos avaliadores com minha imagem quando ele perguntou, num impecável francês, se eu conhecia alguma coisa da literatura clássica francesa e de sua descrença e ironia quando eu respondi: tudo e, sua surpresa indisfarçável enquanto ouvia minha ampla e qualificada exposição de conhecimentos, também em um impecável francês. O menino raquítico e curioso de Cordisburgo apresentou aos avaliadores uma qualificação inquestionável para o cargo que exerceria.

A partir da aprovação, a cultura cosmopolita, as causas internacionais me seduziram por completo. Pude atuar com brilhantismo, tendo sido convidado a ocupar muitos cargos e funções expressivas na vida diplomática.

O primeiro país em que fui designado como cônsul foi Hamburgo, tendo permanecido por muitos anos, antes de ser designado para outros variados países. Paralelamente estudei a fundo grandes obras literárias internacionais, mas escrevendo muito sobre minha terra, costumes, simplicidade e linguagem. A cultura foi me afastando de termos antes tão presentes, de expressões tão conhecidas e um dia pedi ao meu pai que me enviasse uma lista destes maneirismos e percepções, ora meio apagadas de minha mente. Meu clamor por estes dados fez com que em 1952 eu participasse de uma comitiva de vaqueiros viajando de Cordisburgo a Sete Lagoas, trabalhando como ajudante de vaqueiro, compartilhando seus afazeres, enquanto conduzia a boiada, reaprendendo os maneirismos, os termos regionais, ressuscitando a linguagem tradicionalista embotada em alguma circunvolução do meus hemisférios cerebrais.

Nesta época já possuía alguns livros publicados reconhecidos e teimava em me candidatar à Academia Brasileira de Letras. Não obtive sucesso imediato, quando finalmente fui escolhido, levei anos para ser empossado, tendo morrido quatro dias após minha posse. Minha últimas lembranças não são do glamour cosmopolita internacional. São da pequena Cordisburgo a me dizer_ volte pra casa Diadorin. Peguei meus óculos e voltei.

Jane Ulbrich
18/10/2016

 

 


 


Site elaborado pela wwsites - sites para escritores